quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Projeto Cérbero - vídeo arte naïf


ano zero – 2009

Não pretendemos conceituar, justificar ou explicar a experiência do Projeto Cérbero. Isso porque nutrimos um profundo sentimento de que não há conceituação ou justificativa possível para o que estamos experimentando. Pois é justamente desse espírito que tudo julga, justifica e conceitua, que de tudo exige uma explicação razoável que estamos tentando escapar.

Agora após um ano de trabalho e nove realizações cumpre notar os caminhos e as conquistas. Começamos no final de 2008 com o intuito de realizar um vídeo por mês, sempre na rua, com três câmeras e filmando em apenas um dia. A rua nos interessou por sua imprevisibilidade, por sua imponderabilidade, na rua todos a princípio são iguais, filmar na rua é também uma postura política. No início estávamos muito ligados aos nossos estudos e experiências com performance, partimos para uma busca de síntese simbólica ligada ao corpo e tínhamos ainda uma necessidade de recusar a representação. Os três primeiros vídeos estiveram marcados por esta orientação. No entanto sentimos que esta recusa da representação estava nos limitando. Com o Cérbero #04 A Sagrada família um novo e mais amplo campo de experimentação nos foi aberto. Nessa experiência propusemos aos atores uma livre improvisação sem nenhuma preparação prévia a partir apenas de uma curta descrição dos personagens que enviamos previamente aos atores pela Internet. Agora a ação passava a acontecer sem interrupção, sem o corta/repete do cinema, nos aproximamos do acontecimento e do happening, a ação passou a ganhar relativa autonomia com relação ao vídeo. O oposto dos primeiros vídeos passou a ocorrer, se antes era uma síntese de signos, agora gerávamos uma proliferação de sentidos e referências, ventos do cinema marginal e da tropicália passaram a nos embalar. O C#06 Romance de Cavalaria e o C#8 A fantástica terra do diabo amarelo foram desdobramentos da experiência com a Sagrada família.

O C#05 O Selvagem impulso que estremeceu o ar foi uma experiência diferente, por um lado perdemos a força, a liberdade e o imprevisível da improvisação, pois tínhamos um roteiro muito bem definido, por outro nos abrimos pela primeira vez à participação de qualquer pessoa que tivesse interesse. Passo que só voltamos a dar com o C.#09 Play to Bus que realizamos em parceria com o finlandês Mika Arnhein. Com o C#07 As mulheres na sala ao lado não estão falando sobre Miguelangelo exploramos algo novo, chegamos a um estranho lugar de convívio de ficção e documentário. Os atores assumiam papéis de personagens que vendiam dvds do Cérbero na rua, as vendas eram bem reais, mas os personagens não. É preciso notar que este jogo de ficção e realidade gera uma potenciação do falso, ele ganha um leve sabor de crime e uma acidez irônica, este aspecto orsonwelliniano do falso passou nos ser caro. Essa experiência tinha também uma curiosa forma metalingüística, falávamos do Cérbero vendendo o Cérbero, foi através dela que chegamos ao termo vídeo arte naïf.

Arte naïf quer dizer arte ingênua, em geral as pessoas entendem isso como uma arte feita espontaneamente por alguém que não possui estudo, técnica: arte bruta. Para Nietzsche, no entanto, ingênua é a arte de Homero e de Rafael. O naïf seria a arte apolínea, a arte da bela forma, a aparência da aparência, algo muito raro e difícil, esta arte seria ingênua por possuir o princípio de prazer na aparência, um extasiante mundo onírico que esconderia o real das coisas, bem entendido o real como pura devoração, aniquilamento e contradição. Ambas as acepções nos interessam. Se bem que a primeira, no sentido de arte bruta e espontânea seja uma constante mais forte no nosso trabalho.

A ação Play to Bus foi algo surpreendente, uma proposta completamente aberta ao comportamento e a quem quisesse participar, uma espécie de grau zero do experimental. Mika Arnhein propôs via internet que as pessoas viessem vestidas com um traje dadaísta, propôs também que se formasse uma Orquestra Conceitual e Futurista de Polifonia convidando músicos e não músicos a trazerem seus instrumentos. No momento da ação foram dadas algumas instruções, que ele chamou de os dez mandamentos, mas que eram frases abertas a interpretação, não haviam personagens previamente elaborados, mas haviam pessoas que ficaram incumbidas de orientar e agitar o coletivo. A desconcertante anarquia da proposta, o fato de o próprio tema da ação ser o jogo com o caos, a quase que total ausência de um planejamento do que iria ocorrer na hora consistiram num verdadeiro desafio. O que mais nos interessou nessa experiência foi uma espécie de coro de espectadores que se formou com as pessoas que ali apareceram e se integraram ao jogo, elas ocupavam um estranho lugar, ora apenas assistiam as cenas que eram geradas pelos atores/agitadores, ora se integravam ao jogo numa composição coral. Também a presença dos músicos enriqueceu muito o jogo.

A idéia de trabalho em progresso está profundamente relacionada com o experimental como ele o foi entendido por Hélio Oiticica, não se trata de experimentar para chegar um dia a um resultado, a uma forma final e bem acabada, o experimental é ele próprio o resultado. Se há um progresso é no sentido de experimentar cada vez mais, manter-se no experimental é esse o objetivo mais difícil se a este movimento nos agarramos é porque acreditamos que somente ele realmente cria, só ele nos põem em posição de pensar a cultura e não por ela ser pensado. Portanto não se trata de criar uma tendência estética, mas de absorver, de comer e pôr em jogo todas as tendências estéticas que nos interessem e que se criem no experimental. Eis o sentido fundamental do jogo e do prazer no jogo.

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